Nos Estados Unidos, 70% dos que sofrem de alguma perda, não usam aparelhos. Não temos um número para entendermos como é essa situação no Brasil. Mas se pensarmos que lá temos uma população com um poder aquisitivo maior e, portanto, com mais chances de comprar aparelhos auditivos, então podemos concluir que esse percentual de pessoas com perda auditiva, que ainda não fazem uso de tecnologia para melhorar isso, seja maior por aqui. Ressalva: Nos Estados Unidos não há um plano de saúde público, como temos no Brasil, o SUS e esse nosso Sistema Único de Saúde realiza um importante trabalho de distribuição de aparelhos auditivos a quem não tem condições de comprar.
Foi pensando nesse enorme público, desassistido de uso de tecnologias auditivas (aparelhos auditivos) que, em 2017, houve o início de uma mudança na legislação americana, que criou uma categoria de aparelhos auditivos denominada OTC (Over The Counter), ou, em tradução livre para o português, aparelhos auditivos de venda livre. Em outras palavras, são aparelhos que podem ser comprados diretamente pelo consumidor, diretamente em lojas on line na internet e nas farmácias. Simples assim: a pessoa chega no balcão da farmácia ou entra no site da fabricante do aparelho e faz sua compra. Não precisa apresentar nem um exame!
Isso tudo começou em 2017, no mandato do então presidente Donald Trump. O prazo era para o FDA regulamentar a lei em agosto de 2020, mas daí veio a pandemia.
No ano passado, o presidente americano Joe Biden assinou uma ordem executiva para que o FDA regulamentasse o projeto dos OTCs o mair rápido possível, pois o esse trâmite estava se arrastando mais do que o previsto. Depois de muitas discussões em várias instâncias da sociedade americana, envolvendo os mais diferentes atores, desde profissionais de saúde, como médicos e fonoaudiólogos, uma consulta pública aberta para consumidores, associações de defesa dos consumidores e até a própria Academia Americana de Audiologia (AAA), o FDA enfim publicou em agosto a regulamentação dos OTCs e as fabricantes serão autorizadas a começarem as vendas on line a partir de 17 outubro de 2022, ou seja, o mês que escrevo esse artigo.
Algumas premissas dos OTCs:
– só podem ser usados em maiores de 18 anos
– são indicados apenas para perdas consideradas leves à moderadas
– os valores serão bem menores do que os aparelhos auditivos tradicionais, variando de 300 a 600 dólares.
– os próprios consumidores farão o ajuste do aparelho, para se adequar a sua perda auditiva.
A regulamentação aplicou ainda alguns princípios que as fabricantes devem seguir, entre eles, o limite máximo de saída de 111dB, para proteger o consumidor e a conformidade com um padrão conhecido como 510(k), exigido pelo FDA (que é como a Anvisa aqui no Brasil).
Nos Estados Unidos, fonoaudiólogos estão em um debate intenso sobre o assunto. Alguns pontos levantados nesse debate:
– para onde esses consumidores irão quando houver problemas funcionais nesses aparelhos, como entupimento por cera, por exemplo?
– como fica o trabalho educativo das reais expectativas dos consumidores que tem perdas auditiva e vão em busca desses aparelhos?
– como fica as estratégias de comunicações trabalhadas nas terapias de reabilitação auditiva?
– como será casos de existência de patologias associadas/desencadeadoras da perda auditiva?
– como os consumidores saberão com precisão o seu nível de perda auditiva?
– será grande o desalento ocasionado a esses consumidores pela subamplificação ou configuração insatisfatória?
Apesar dessas preocupações, uma pesquisa realizada pelo CEO do portal Americano HearingTracker, o audiologista Abram Bailey, mostrou que 26% dos audiologistas americanos pretendem indicar ou até mesmo vender OTCs em suas clínicas e 55% estão propensos a prestar algum tipo de atendimento de apoio para esses consumidores.
Vale destacar que a Academia Americana de Audiologia trabalhou junto aos órgão regulamentadores governamentais, incluindo o FDA, para garantir algumas premissas básicas de segurança para os consumidores de tais aparelhos.
O que poderíamos destacar como pontos positivos dos OTCs?
– pode melhorar o acesso a aparelhos auditivos para pessoas com perdas leves a moderadas, que não teriam condições de comprar aparelhos tradicionais.
– os consumidores poderão adquirir aparelhos sem agregação de serviços, que normalmente acompanham os valores de aparelhos tradicionais (várias sessões de acompanhamento, garantia estendida, acessórios, etc)
– pode criar um movimento competitivo entre as empresas, diminuindo os custos até mesmo dos aparelhos tradicionais
– devido aos preços bem mais acessíveis por aparelhos regulamentados, fabricados por indústrias idôneas e tradicionais, poderá enfraquecer o mercado clandestino de amplificadores auditivos, principalmente os encontrados em sites como o Aliexpress, que é o destino de muitos que buscam alternativa aos aparelhos tradicionais no Brasil.
Com a entrada dos OTCs no mercado mundial e a possibilidade de compras on-line, não existirão mais barreiras para que alguém que more no Brasil, por exemplo, comprar um aparelho auditivo OTC pela internet, diretamente do site da fabricante.
Não há dúvidas da importância que os fonoaudiólogos brasileiros terão nesse processo. Por que, por mais que esses aparelhos tenham o rótulo de aparelhos vendidos sem recomendação de um profissional de saúde auditiva, ou seja, sejam de venda livre, não há como negar que eles, os fonoaudiólogos, terão grande relevância nesse processo, uma vez que a etapa de configurar um aparelho pode ser simples e feito pela maioria dos consumidores, mas não é qualquer pessoa que vai entender como adaptar essas configurações para o seu tipo de perda auditiva.
Abre-se aqui então, uma oportunidade para aqueles profissionais que optarem por dar suporte para pessoas que adquirirem aparelhos OTC e encontrarem dificuldades em fazer a autoconfiguração. Assim, recupera-se um usuário que poderia muito bem ficar desiludido com o uso de um OTC que não foi bem-sucedido. Alias, esse pode ser um ponto negativo forte dos aparelhos OTCs, pois ao trazer uma grande quantidade de usuários despreparados, com altas expectativas, grande parte desses podem não terem sucesso em suas adaptações e abandonar de vez qualquer nova tentativa de reabilitação auditiva, por qualquer outro meio.
Resta aos profissionais de saúde auditiva no Brasil, em especial aos fonoaudiólogos, dois caminhos:
– condenarem veementemente o uso de OTCs, se negando a atender usuários que os tenham comprado e precisam de um suporte para configurar esses aparelhos;
– continuarem a oferecer seus dispositivos tradicionais, mas oferecerem também suporte para essa parcela de consumidores que precisarão de ajuda para configurar os OTCs comprados pela internet.
Vale lembrar que esse novo mercado de aparelhos auditivos OTCs não será ocupado por indústrias amadoras. Como exemplo, na última segunda feira (04/10/2022), a gigante Sony (3ª maior fabricante de fones de ouvido do mundo) anunciou que está entrando na competição para fabricar aparelhos OTC e fará isso em uma parceria com um dos grupos que mais vendem aparelhos auditivos tradicionais atualmente, a WSA, proprietária da Widex, Signia, Rexton e Audioservice. Ou Seja, uma novata na área de aparelhos auditivos (mas experiente em produção de aparelhos sonoros) junto com uma expert em produzir aparelhos auditivos profissionais (mas inexperiente em produção de eletrônicos de consumo em massa). Philips e Sennheiser são outros exemplos de fabricantes de produtos sonoros que mostraram interesse em fabricar OTCs. E esse movimento de união entre fabricantes experts em produtos sonoros com fabricantes de aparelhos auditivos tradicionais parece que será uma tendência. Isso pode ser positivo, pois essas grandes empresas que produzem eletrônicos de consumo em massa, podem investir em marketing de conscientização dos problemas auditivos e da necessidade de buscar sanar esse problema, com um alcance de pessoas muito maior do que teriam as fabricantes de aparelhos auditivos convencionais, que ficam muito limitadas um público específico e de uma faixa etária de maior idade (meia idade e idosos).
Já que esses OTCs se destinam principalmente para aqueles que tem uma perda auditiva leve e até moderada, fica claro que estamos falando, geralmente, de um público mais jovem, mais antenado no manuseio de tecnologias, que teriam, pressupomos, intimidade para realizar os autos ajustes, ao mesmo tempo que faz parte de um grupo de pessoas que tendem a minimizar sua perda, seja por não acharem relevante ou suficientemente impactante negativamente para procurar uma ajuda especializada, seja por motivos de preconceito em aceitar isso. Com um dispositivo self-service, poderia ser diferente.
Para os que estão empolgados com esse mundo novo de oportunidades que se abre, é importante observar alguns pontos:
– ver um fonoaudiólogo primeiro
– algumas situações precisam de atenção: diferença notável de audição entre as orelhas, perda auditiva repentina, dores no ouvido, sensações de estranhas no ouvido, tonturas, zumbido, são alguns sinais de alerta. Não tente resolver sozinho nesses casos.
– se for comprar um aparelho desses, tenha em mente que há possibilidades de não se adaptar.
-procure conhecer políticas de devoluções e garantias. Para produtos importados, isso acaba se tornando mais complicado.
Eu, como um entusiasta em tecnologias auditivas e um usuário consumidor de aparelhos auditivos e apoiador das liberdades individuais, vejo a iniciativa com bons olhos, embora com algumas ressalvas.